Nasci com a música nos ouvidos! Não me refiro apenas às canções de ninar, tradicionais ou improvisadas, com que a minha mãe me mimoseava, e que eu, já rapaz de cinco ou seis anos de idade, ainda dela reclamava, pois me faziam tão bem!
Refiro-me também à música que
provinha da natureza, com o cantar do galo, o cacarejar das galinhas, o piar
dos pintainhos, o chilrear dos pássaros, o zurrar dos burros, o relinchar dos
cavalos, etc.
Bem, nem todos os sons que vinham
da natureza se me apresentavam como música: nos primeiros anos, tinha eu um pavor
enorme das trovoadas que pareciam ser vozes de coléricos deuses e cujos efeitos
tenebrosos procurávamos evitar, lá em casa, rezando à “Santa Bárbara, a
generosa”, ao Deus Todo-Poderoso, ao “Santo António, o milagreiro”, e a outros santos,
tal como nos ensinava a Djodjó, minha mãe! Mas, com o tempo, habituei-me a
esses estrondos que vinham do céu, os quais passavam a soar aos meus ouvidos como
primorosos fragmentos musicais. Daí até imitá-los foi um passo, resultando estranhas
e contrastantes melodias, que a minha medrosa mãe reprovava, benzendo-se, ao
mesmo tempo que me ameaçava com umas tapas!
O interesse pela música, nos
primeiros anos, levou-me a realizar inúmeras experiências musicais arcaicas,
com flautas, violões e tambores construídos a partir dos mais incríveis
materiais locais. A título de exemplo, minha primeira flauta foi feita de
pedaço de caniço e de teia de aranha! Meu primeiro rádio foi uma caixa de
fósforos vazia, com pequenos buracos, dentro da qual eu colocava um inseto denominado
“fonfom”, que emitia uma "música" algo furiosa, certamente devido à vontade que o
prisioneiro tinha de se libertar. Enfim, um misto de pequena doce maldade!
Entretanto, a minha atração pela
música foi evoluindo, passando a integrar, depois de alguns testes, o grupo
coral da Igreja de São Domingos (Santiago), que atuava nas missas dominicais e
ou festivas, e o grupo cultural de Bom Jardim, que cultivava a música, o teatro
e a dança, sob a sábia direção de Ano Nobo, de seu nome próprio Fulgêncio. Este
homem de cultura, que se destacou como músico e compositor de grande talento, mas
que também era um poeta e dramaturgo de se tirar o chapéu, além de professor
primário pro bono e instrutor de largas
dezenas de adolescentes e jovens de São Domingos, entre os quais eu próprio, na
arte musical e nas bases e técnicas da orquestração, com destaque para o violão,
o cavaquinho e o violino.
O violão foi a minha preferência
e, para a sua aprendizagem básica, servia-me de instrumentos que o próprio Ano
Novo me emprestava, por longas semanas! Quando, aos 19 anos de idade, adquiri, na
ilha da Brava, o meu primeiro violão, começou uma fase de dedicação mais
regular ao treino com este instrumento, aproveitando as horas de ócio que se
sucediam às horas de trabalho como professor, diretor de escola e delegado
escolar. Regressado à ilha de Santiago e a S. Domingos, participei, com o meu
violão, em vários ensaios e atuações, em meios profanos e religiosos, tendo por
mestres o Ano Novo e o Padre Firmino.
Cheguei a ser o baixista do
conjunto musical eletrónico “Os Camponeses”, de que faziam ainda parte, entre outros, o
Nonó (saxofone, flauta, clarinete), o Lindorfo (viola solo), o Emanuel (viola ritmo), o Frank
(percussão e voz) e o Fifi (voz), além de compositor de algumas canções, uma
das quais era uma homenagem a Amílcar Cabral, que o Fifi interpretava soberbamente:
“Pa tudo kau si nome corri/ Nós Amílcar ka ta morri/Del ninguém ka ta esquecê…”
Porém, as lides profissionais e
académicas afastaram-me, quase completamente e por longos anos, da produção e
da atividade musical. Poucas vezes toco ao violão, mas, quando o faço, ainda
que sem a mestria de meus antigos colegas de tocatina, sinto-me transportado para
uma espécie de quinta-essência, para um mundo algo paradisíaco, que vale a pena
viver!
Em casa, continua à minha espera,
ao canto de uma das salas, um amigo que chora e canta fantasticamente ao
contacto com os meus longos dedos. Refiro-me ao meu atual violão, adquirido, em
2010, na cidade de Braga. Prometo reconciliar-me contigo, meu amigo, para fazer
ressurgir, ainda que só para mim, o meu outro lado, sumamente reprimido, mas à espera
de se soltar, com a inspiração das musas, sejam estas as nove filhas de Zeus e Mnemosine,
sejam elas outras, mais terrenas, que as há!
Praia, Agosto de 2015.
Bartolomeu Varela