Na sequência do artigo "Eu e a Religião", publicado nesta página, há nove anos, retomo aqui algumas memórias relacionadas com a minha vivência cristã, com foco no meu relacionamento com a Igreja.
Nasci, cresci e me fiz homem em simbiose com a Igreja Católica de São Nicolau Tolentino, sita em Várzea da Igreja, São Domingos. Não me refiro à nova e imponente Igreja de São Domingos, recentemente inaugurada, mas à antiga e também linda igreja da minha infância e juventude.
Antiga Igreja Católica de São DomingosAos 5 dias de idade, fui levado à Igreja para ser batizado na fé cristã, iniciando-se, assim, precocemente, o processo da minha formação e desenvolvimento como cristão. Obviamente, não podia estar ciente da opção feita pelos meus pais, que, entretanto, se apressaram em tornar-me cristão, a fim de evitar que eu morresse “mouro”, pois, como me contaram, logo após o nascimento, fiquei doente e receavam um desenlace fatal, apesar das constantes preces e do recurso às receitas da medicina tradicional, de que minha mãe era pródiga e com as quais salvou muitas vidas, incluindo as que se encontravam em risco por mor da feitiçaria, que teria sido o meu caso.
Seja como for, aos 7 anos, após as elucidações domésticas e a educação catequética, estava, precocemente, a par do que significavam, no essencial a fé e a condição cristãs, pelo que fiz, com entusiasmo, a minha Primeira Confissão, seguida da minha Primeira Comunhão, na Igreja Católica de São Domingos.
Aos 12 ou 13 anos recebi a Confirmação na Fé Cristã, através do Sacramento do Crisma, ministrado na Igreja Paroquial de São Domingos pelo então Bispo da Diocese, Dom José Filipe do Carmo Colaço.
Na verdade, o meu Sacramento do Crisma tem o seu quê de particular: como já possuía um nível de escolaridade que me permitia fazer a minha autopreparação para o exame de admissão ao Sacramento, fui incumbido de ser o formador das demais pessoas da minha aldeia, incluindo a minha mãe e pessoas mais idosas. Acabámos - formador e formandos - por ser crismados juntamente!
Afastada a possibilidade de ingressar no Seminário de São José, na Praia, no qual me apresentei em setembro 1966, sob o impulso do Padre Campos, nem por isso ficou desvanecida a minha forte participação na vida religiosa, que chegou a ser marcada, nomeadamente, pela participação diária nas missas matinais, na qualidade de acólito.
Na verdade, a Igreja Católica de São Domingos foi o locus do meu desenvolvimento espiritual e humano, conjuntamente com o Salão Paroquial, diligentemente edificado sob os auspícios do Padre António Figueira Pinto, com o contributo decisivo dos paroquianos, em especial de figuras de proa do laicado local, como Maria Alice, Ano Novo, Margarida Barros, Cecílio Correia (Morgado), António Denti d'Ooru, entre muitos outros, que assumiram o desafio de fundar o teatro em S. Domingos e organizar numerosos eventos culturais nas imediações da Igreja, logrando, deste modo, contribuir, com os fundos angariados, para o financiamento do Salão.
Nesses dois espaços, e até aos meus 20 anos, desempenhei ativamente diversas funções religiosas e socioreligiosas, como acólito e ajudante do Sacristão, membro dos grupos coral e de teatro, presidente da pré-JAC (Juventude Católica infantil), membro e secretário da Legião de Maria, catequista, escuteiro, etc., culminando, aos 22 anos de idade, com o primeiro casamento.
A partir dos 22 anos, deixei de residir permanentemente em São Domingos, o que fez mudar radicalmente a minha relação com a Igreja do meu torrão natal, que também mudou, passando a ser um património religioso valioso e de grande centralidade no panorama local.
A centralidade da nova Igreja Católica de São DomingosImagem da nova Igreja Católica de São Domingos
Imagem de uma procissão em direção â nova Igreja
Efetivamente, com a mudança da minha residência habitual de São Domingos para a Vila de Nova Sintra, na Brava (outubro de 1976) e, sucessivamente, para as cidades da Praia (setembro de 1979), de S. Filipe do Fogo (setembro de 1981) e, novamente para a capital, a partir de 1984, mantive uma relação menos frequente com a Igreja Católica, em particular com a de S. Domingos, o locus da minha iniciação cristã e do meu posterior desenvolvimento na fé católica.
Passei a ser um cristão e católico menos ritualista, mas de sólidas convicções religiosas, empenhado, sobretudo, em colocar em prática as premissas essenciais da religião católica, que se assentam na prática do Bem e no cultivo do Amor a Deus e ao Próximo.
Evito entrar em polémicas sobre questões relativamente às quais a Igreja não parece estar preparada e que, por isso mesmo, são passíveis de provocar fraturas no tecido religioso, como: o celibato do sacerdote como opção e não como imperativo absoluto; a possibilidade de ordenação sacerdotal de mulheres; a regulação das condições em que é admitido o divórcio em casamentos religiosos; a redução de rituais, nomeadamente os que são desnecessariamente repetitivos; a eliminação ou redução de práticas de excessiva veneração de santo/as (abeirando-se do seu endeusamento), amiúde em detrimento da oração e veneração ao próprio Deus.
Considero, por exemplo, que é salutar ir às missas e participar nas atividades que lhes conferem sentido religioso, à luz da fé e da doutrina católicas, mas entendo que mais importante que ir à missa é o cultivo da Palavra de Deus, em especial dos já referidos valores do Bem e do Amor, que verdadeiramente sintetizam a essência divina.
Praia, setembro de 2024
Bartolomeu Lopes Varela