sábado, 3 de agosto de 2024

Uma história de Nota 20 em Português

Na Escola de Habilitação de Professores de Cabo Verde, em Variante, São Domingos, a professora D. Catarina Cunha, devolve aos alunos-mestres, devidamente corrigidas, as provas de Língua Portuguesa que aqueles tinham realizado na semana transacta.

Chegada a vez do aluno Goiaba (nome fictício), este lança um olhar para o canto superior da sua prova. Com o semblante de incontida alegria, pula de contente e, como se não bastasse, dirigindo-se para a turma, que o observa, com curiosidade, grita:

-Dja-m rabenta ku Katrina!!! (Tradução: Já arrebentei com a Catarina).

Olhando para mim (o melhor aluno da turma), pergunta:

-"6", kuantu bu tira? (Tradução: quanto tiveste?)

Cabe esclarecer que o meu número de aluno era "6" e, com frequência, era pelos respetivos números que os alunos-mestres se dirigiam uns aos outros.

-18, respondo e, curioso, indago: I bo? (Tradução: E tu?)

-20! Mi é mais bon ki bo! (Tradução: Eu sou melhor que tu!).

Nisto, o chefe da turma, Penedo (nome fictício), que se aproxima do Goiaba, toma-lhe a prova e, ao ver a classificação, diz, em voz alta e audível para toda a turma:

-0,20 valores!!! Asno!!! Nen bu ka sabi le numerus. (Tradução: Nem sabes ler números).

-Ah,ah,ah! - reage a turma com uma estrondosa e infindável gargalhada, enquanto a professora, que não compreende o Crioulo, olha para todos, entre divertida e curiosa.

Cabisbaixo, o Goiaba foi sentar-se, ciente de que passou de "o melhor" para o "pior" da turma.

No fim da aula, o chefe da turma, a pedido da professora, explicou a esta o que se tinha passado.

Pude ver no semblante da D. Catarina um misto de surpresa e discreto gozo.

Praia, 3 de agosto de 2024

Bartolomeu Varela 

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Eu e a música!


Nasci com a música nos ouvidos! Não me refiro apenas às canções de ninar, tradicionais ou improvisadas, com que a minha mãe me mimoseava, e que eu, já rapaz de cinco ou seis anos de idade, ainda dela reclamava, pois me faziam tão bem!

Refiro-me também à música que provinha da natureza, com o cantar do galo, o cacarejar das galinhas, o piar dos pintainhos, o chilrear dos pássaros, o zurrar dos burros, o relinchar dos cavalos, etc.

Bem, nem todos os sons que vinham da natureza se me apresentavam como música: nos primeiros anos, tinha eu um pavor enorme das trovoadas que pareciam ser vozes de coléricos deuses e cujos efeitos tenebrosos procurávamos evitar, lá em casa, rezando à “Santa Bárbara, a generosa”, ao Deus Todo-Poderoso, ao “Santo António, o milagreiro”, e a outros santos, tal como nos ensinava a Djodjó, minha mãe! Mas, com o tempo, habituei-me a esses estrondos que vinham do céu, os quais passavam a soar aos meus ouvidos como primorosos fragmentos musicais. Daí até imitá-los foi um passo, resultando estranhas e contrastantes melodias, que a minha medrosa mãe reprovava, benzendo-se, ao mesmo tempo que me ameaçava com umas tapas!

O interesse pela música, nos primeiros anos, levou-me a realizar inúmeras experiências musicais arcaicas, com flautas, violões e tambores construídos a partir dos mais incríveis materiais locais. A título de exemplo, minha primeira flauta foi feita de pedaço de caniço e de teia de aranha! Meu primeiro rádio foi uma caixa de fósforos vazia, com pequenos buracos, dentro da qual eu colocava um inseto denominado “fonfom”, que emitia uma "música" algo furiosa, certamente devido à vontade que o prisioneiro tinha de se libertar. Enfim, um misto de pequena doce maldade!

Entretanto, a minha atração pela música foi evoluindo, passando a integrar, depois de alguns testes, o grupo coral da Igreja de São Domingos (Santiago), que atuava nas missas dominicais e ou festivas, e o grupo cultural de Bom Jardim, que cultivava a música, o teatro e a dança, sob a sábia direção de Ano Nobo, de seu nome próprio Fulgêncio. Este homem de cultura, que se destacou como músico e compositor de grande talento, mas que também era um poeta e dramaturgo de se tirar o chapéu, além de professor primário pro bono e instrutor de largas dezenas de adolescentes e jovens de São Domingos, entre os quais eu próprio, na arte musical e nas bases e técnicas da orquestração, com destaque para o violão, o cavaquinho e o violino.

O violão foi a minha preferência e, para a sua aprendizagem básica, servia-me de instrumentos que o próprio Ano Novo me emprestava, por longas semanas! Quando, aos 19 anos de idade, adquiri, na ilha da Brava, o meu primeiro violão, começou uma fase de dedicação mais regular ao treino com este instrumento, aproveitando as horas de ócio que se sucediam às horas de trabalho como professor, diretor de escola e delegado escolar. Regressado à ilha de Santiago e a S. Domingos, participei, com o meu violão, em vários ensaios e atuações, em meios profanos e religiosos, tendo por mestres o Ano Novo e o Padre Firmino.

Cheguei a ser o baixista do conjunto musical eletrónico “Os Camponeses”, de que faziam ainda parte, entre outros, o Nonó (saxofone, flauta, clarinete), o Lindorfo (viola solo), o Emanuel (viola ritmo), o Frank (percussão e voz) e o Fifi (voz), além de compositor de algumas canções, uma das quais era uma homenagem a Amílcar Cabral, que o Fifi interpretava soberbamente: “Pa tudo kau si nome corri/ Nós Amílcar ka ta morri/Del ninguém ka ta esquecê…”

Porém, as lides profissionais e académicas afastaram-me, quase completamente e por longos anos, da produção e da atividade musical. Poucas vezes toco ao violão, mas, quando o faço, ainda que sem a mestria de meus antigos colegas de tocatina, sinto-me transportado para uma espécie de quinta-essência, para um mundo algo paradisíaco, que vale a pena viver!

Em casa, continua à minha espera, ao canto de uma das salas, um amigo que chora e canta fantasticamente ao contacto com os meus longos dedos. Refiro-me ao meu atual violão, adquirido, em 2010, na cidade de Braga. Prometo reconciliar-me contigo, meu amigo, para fazer ressurgir, ainda que só para mim, o meu outro lado, sumamente reprimido, mas à espera de se soltar, com a inspiração das musas, sejam estas as nove filhas de Zeus e Mnemosine, sejam elas outras, mais terrenas, que as há!

Praia, Agosto de 2015.
Bartolomeu Varela

domingo, 31 de maio de 2015

Eu e a Religião!



Minha infância e adolescência foram profundamente influenciadas pelos valores da educação religiosa, aprendidos e postos em prática no ambiente familiar, na catequese, nas missas e nas diversas estruturas e da Igreja Católica, ao tempo existentes, sobretudo em São Domingos, Ilha de Santiago, meu torrão natal.

Tendo aprendido na família os rudimentos da religião e as primeiras orações, desde que me lembre, seguia, invariavelmente, o mesmo ritual que consistia em iniciar o dia com o "sinal da cruz" e uma breve oração, a que seguiam, à laia de cumprimentos, os pedidos de bênção aos meus pais, que mos concediam piedosamente:
- Deus te dê juízo e te acompanhe! - dizia, por vezes, o papá;
- Deus te  abençoe e te guarde!  - dizia, outras vezes, a Djodjó, minha mãe.

À mesa, antes de iniciarmos as refeições, era também hábito, lá em casa, uma breve prece, em que o pai ou a mãe agradecia a Deus e Lhe pedia que abençoasse os alimentos que iam ser servidos.

À noite, momentos antes de me recolher, em geral mais cedo do que os pais, fazia uma breve oração e, em seguida, desejava boa noite aos país, que correspondiam, acrescentando:
- Anjo da tua guarda te acompanhe!
- Deus te ilumine o caminho e te ajude !

Minha irmã, a Branca, mais nova, seguia na família os mesmos rituais e, tal como eu, aprendia os valores do amor a Deus e ao próximo, do respeito aos pais e aos mais velhos, da verdade e da bondade, etc.

O aprofundamento dos conhecimentos religiosos tinha lugar na catequese, a cargo de catequistas, normalmente pessoas que tinham frequentado a instrução primária e possuíam conhecimentos básicos da doutrina cristã, das diversas orações e dos rituais e valores católicos, que nos transmitiam com mestria, muita paciência, ainda que, por vezes, com o auxílio de alguns castigos físicos, ao estilo da educação tradicional.

A catequese preparou-me para participar adequadamente nas missas de domingo e, em particular, para receber os meus primeiros sacramentos - a confissão e a comunhão -, o que aconteceu na Igreja de São Domingos, quando
Igreja de São Domingos
tinha sete anos! Lembro-me bem  de ter ido à missa da primeira comunhão trajado de branco, como os demais colegas: calças compridas, camisa de mangas longas e sandálias brancas em plástico, estas últimas tão em voga na altura, sobretudo no seio das gentes mais humildes!

Após o sacramento do Crisma, e tendo já feito a 4ª classe do ensino primário, idealizei ser sacerdote, tendo, para o efeito, projetado continuar os estudos no Seminário de São José, na Praia! Meu Deus, como eu admirava os pequenos seminaristas de São Domingos, como o Isidoro e o Iate, quando, nas suas férias, tomavam parte nas missas de domingo, vestidos de fato e aparentando um ar celestial que os tornavam, aos meus olhos, seres especiais, mais próximos de Deus! Cheguei a apresentar-me no Seminário de São José para iniciar a formação, mas tive de desistir desse intento, admitindo, desde logo, que havia outras formas de me realizar como cristão e católico!
   
Assim, e porque ia evoluindo nos estudos, como aluno aplicado, a partir dos doze anos, fui incumbido de sucessivas responsabilidades na Igreja, como as de acólito (a quem incumbia assistir os padres no ofício da missa), ajudante de sacristão (função desempenhada durante largos anos pelo Pereira, também professor da escola paroquial), leitor das Escrituras, membro e presidente da Pré-JAC (uma espécie de "organização de pioneiros" da Juventude Católica), membro da Legião de Maria, catequista, membro e presidente da Juventude Católica, tendo, outrossim, participado em outras atividades organizadas no âmbito da Igreja, como as do grupo Coral, do grupo de Teatro e do primeiro Agrupamento Escutista de Cabo Verde, que contribuíram, de forma marcante, para a inovação da vida religiosa em São Domingos! Cabe, neste particular, salientar o papel de relevo desempenhado pelo Padre Firmino e por outras figuras da cultura, em São Domingos, como o Ano Novo e a Maria Alice! Graças a eles, a Igreja tornou-se mais jovem, mais alegre, mais atrativa e mais dinâmica! 

Não é propósito deste post entrar em detalhe sobre o meu percurso religioso (talvez volte ao assunto em outro momento). Resumindo esse percurso, um pouco antes do meu primeiro casamento, quando tinha apenas 21 anos, era já em mim forte a convicção de que, mais do que a observância formal das prescrições e dos rituais religiosos, o mais importante e mais difícil é assumir e pôr em prática, de forma consciente e consequente, os princípios e valores essenciais da religião e da moral religiosas, que podem resumir-se no Amor e na Fraternidade e no Cultivo do Bem. Na verdade, que(m) é Deus senão a expressão suprema do Amor e do Bem?

Enfim, tais valores, que aprendi no berço familiar e se consolidaram nas atividades da Igreja, continuaram, ao longo dos anos, e até ao momento (em que sou, assumidamente, menos ritualista), a servir de referência na minha postura perante a vida, tanto nos planos pessoal e familiar como nos da vida cívica, profissional e social.

Chuva engraçada

Em Cabo Verde, a falta e a irregularidade das chuvas são abundantemente descritas em páginas da História do arquipélago, que igualmente dão ...