domingo, 28 de junho de 2009

O meu primeiro dia de aulas na Escola da Variante


Fiz parte do primeiro contingente de mais de oitenta alunos, repartidos por ambos os sexos, que, após aprovação numas concorridíssimas provas de aptidão, inauguraram, no ano lectivo 1969/70, a Escola de Habilitação de Professores, sita em Variante, São Domingos, tendo por Director o professor António Ribeiro da Cunha, que se revelaria famoso, quer pela sua sólida e vasta formação (“Ele sabe tudo”! – dizíamos, apreciando a forma como ele versava connosco os mais diversos assuntos, com mestria e à-vontade e, sobretudo, com uma grande capacidade comunicativa), quer pelo seu exacerbado e implacável autoritarismo (“O menino fica em causa por quinze dias”! – dizia ele, calmamente, a um dado aluno que, por exemplo, retirasse do bananal da escola uma banana madura para saciar a fome).

O autor, ladeado de alguns dos antigos colegas da EHP






Mas, antes de entrarmos na Escola da Variante, eu e os meus colegas desconhecíamos estas características do Director Cunha, sobretudo a segunda. Foi no primeiro dia de aulas que me dei conta dos evidentes sinais de autoritarismo do Director quando ele, numa espécie de sessão de boas-vindas, se reuniu com a minha turma, a dos rapazes (Sim, os “alunos-mestres” estavam distribuídos por duas turmas, em função dos sexos, e raramente ambas as turmas se encontravam em aulas conjuntas). As regras e as advertências enunciadas pelo Director fizeram com que eu e os meus colegas, logo ao primeiro contacto, ficássemos com um receio enorme daquele homem, que, entretanto, e apesar de tudo, viria a marcar, positivamente, a nossa formação e as nossas vidas.

À primeira sessão, de introdução geral ao curso, seguiu-se a primeira experiência de trabalho "extra-escolar" (que iria multiplicar-se ao longo dos quatro anos de um curso que funcionava em regime de semi-internato, com oito horas diárias de aulas e não poucas horas de trabalhos rurais, de arborização, horticultura, etc, a cargo, sobretudo, dos rapazes, pois as meninas ocupavam-se dos chamados “lavores femininos”). Por ordem do Director, procedemos, naquele dias, à remoção dos calhaus que se encontravam ao longo do troço da estrada que ligava a estrada de Milho Branco à Escola de Habilitação de Professores.

Soubemos que, seguidamente a essa actividade laboral, não haveria aula, ou seja, teríamos uma folga. E o meu amigo e colega de peito, Zé-Maria, que não suportava ficar muito tempo sem comer, teve, logo, uma ideia brilhante:
- Vamos ao Milho Branco comprar doce de coco de Nha Doca!
- Mas, e a aula? Podemos chegar atrasados!
- Qual história, temos folga e é só uns instantes!
Acedi. Os doces de coco de Nha Doca eram, de facto, muito gostosos, tendo aliviado a nossa fome de rapazes do interior de Santiago, habituados a comer bem!
Não nos demorámos muito, mas, quando regressámos à Escola, qual não foi nosso espanto quando não vimos vivalma no pátio de recreio. Soubemos pelo Contínuo, o Binda, que o Director se encontrava novamente reunido com a turma dos rapazes! Ficámos arrepiados, de tanto medo. O sabor dos doces de coco tornou-se amargo.
- Entramos ou não entramos na sala? – perguntei ao Zé-Maria, que hesitava, tanto quanto eu.
A conselho do Binda, que nos ouvia e nos olhava com um ar simultaneamente brejeiro e misterioso, lá nos decidimos. E batemos à porta, abrindo-a, acto seguido:
-Dá licença, Sr. Director? – perguntei.
-Onde estavam os meninos?
- Fomos até ao Milho Branco comprar doces….
Ouviram-se gargalhadas galhofeiras dos colegas da turma.
- O quê?!
- Nós estávamos com fome e…
- O quê?!
- Nós estávamos com fome e, como não tínhamos aula, fomos ao Milho Branco, para comprar…
- O quê?!
-… Doce de coco!...
Novas gargalhadas interromperam-me, seguidas da pergunta do furibundo Director:
- O quê?!
Eu, desesperado, sem saber como explicar ao exasperado Director o que se tinha passado, e talvez duvidando que o meu português tivesse sido eloquente, atirei com a seguinte resposta, sem me dar conta de que me expressava em puro crioulo cabo-verdiano:
- Sr. Director nu staba cu fómi e pamódi nu ca tinha aula, nu bá cumpra dóci de coco na Midjo Brancu!

Ouviu-se da turma uma estrondosa e interminável gargalhada, a que se seguiu um pesado silêncio.
O Director, que nos olhava com um ar terrível, quis balbuciar uma frase, que não chegou a sair-lhe da boca.
Enquanto isso, eu e o Zé-Maria permanecíamos à porta da sala, à espera da sentença.
-Vamos ser expulsos da Escola! - cochicha-me o Zé-Maria!
Confesso que, lá no meu íntimo, eu esperava isso mesmo do furibundo Director!
- Vão sentar-se! – explode ele, por fim.
Sentámo-nos, humilhados e destroçados, à espera de alguma ordem de expulsão ou, sei lá, de fuzilamento, mas nada disso aconteceu, tendo o Director, já refeito do choque, retomado a aula que havíamos interrompido. Não entendi nada do que ele dizia, e o mesmo aconteceu com o meu colega de infortúnio, Zé-Maria, como este me diria, mais tarde.

Mas esse dia, marcado pelo vexame decorrente do facto de falar crioulo numa aula de português dum curso de formação de professores, ficou para sempre gravado na minha memória.

domingo, 12 de abril de 2009

Os pecados da minha meninice


- Quem foi que comeu todo o açúcar que tinha guardado aqui? – pergunta minha mãe Eduarda, a quem eu chamava Djodjô, contrariamente à minha irmã, a Branca, que lhe chamava mamã -, enquanto, com ar sério, aponta para a caneca de litro vazia.
- Eu não, mamã! – responde, rapidamente, minha irmãzinha, com firmeza.
- Eu também, não, Djodjo! – respondo eu, procurando parecer convincente.
- Olhem que é feio e é pecado mentir, além de que constitui outro pecado apossar-nos de coisa que não é nossa! Isso é furtar, é pecado!

Deus e o diabo - o conforto de que Ele é que vence!
A esta palavra, que me fazia pensar num Deus descontente, a contrastar com um Diabo que esfregava as mãos de contente face à expectativa de encontrar companhia no fogo do Inferno, para onde ia condenado quem vivesse e morresse em pecado, eu não tive outro remédio senão confessar, procurando não chorar antes do tempo:
- Fui eu, Djodjô! Desculpa-me!
- Bem, desta vez passa, mas não volta a acontecer, certo?
Anuí, humilhado.

Cenas destas repetiam-se com frequência, tendo por objectos de furto as mais diversas guloseimas ou coisas resguardadas do uso desregrado ou não autorizado: açúcar da terra, mel, queijo, mancara, carne assada, torresmos, linguiça, chouriço, doces, etc, etc.

Mas não eram poucas as situações em que a Djodjô e o papá nem sequer se davam conta dos “estragos”, digo, dos “furtos” que fazíamos (eu, com mais frequência, e a minha irmã, uma vez ou outra, mas quase sempre cúmplice das minhas “incursões”), pois, precavidos, tirávamos, de cada vez, pequenas quantidades que não nos denunciavam facilmente, a não ser após várias reincidências.

Mas se a Djodjô e o pai não davam conta desses “furtos”, já Deus não os ignorava.
- Deus vê tudo, sabe tudo! – assim nos lembravam em casa, na vizinhança, na Catequese, nas Missas dominicais...

E, por isso, os muitos pecadilhos da minha meninice eram confessados, sistematicamente, aos meus confessores. Os meus colegas, tal como me diziam, faziam o mesmo. Não podíamos permanecer em pecado!
- Padre, eu pequei!
- Em que pecaste?
- Furtei açúcar de terra em casa…
-Estás arrependido?
- Sim, padre!
E vinham as absolvições, condicionadas pela observância imediata das penitências habituais, como, por exemplo, rezar um Pai-nosso, uma Ave-Maria, um Glória ao Pai… Ficava com a consciência tranquila, leve!

E, depois, tudo se repetia: as mesmas transgressões eram feitas, confessadas e objecto de penitências, ficando, tacitamente, assumido que bastava a “absolvição” para que ficassem apagados os “pecados” e o pequeno pecador “livre” para voltar a “pecar”, contanto que o "novo" pecado seja outra vez confessado.

Mas os pecados da minha meninice eram mais que muitos: dizer “palavrões” como “chissa” (chatice), “mentira”, “mentiroso”, “bu mai” (“tua mãe”) – tudo isso eram pecados que deveriam ser confessados.

O mesmo se passava com os furtos de coisas pertencentes a pessoas fora da família: uma laranja, um mango, um pedaço de cana-de-açúcar, etc., para mitigar a fome durante as idas e vindas de e para a escola…

Eram pecados que podiam levar ao "fogo do Inferno" se não fossem confessados. É certo que os padres recomendavam o arrependimento, mas, na prática, pouco interessava se os prevaricadores voltavam a reincidir: estando os pecados perdoados por quem representa Deus na Terra, isso bastava.

Hoje em dia, meus filhos, assim como os do estimado leitor destas linhas, não são instados a levar tão a sério como outrora uma série de transgressões a normas de convivência social.

Nem mesmo os sacerdotes são tão rigorosos como outrora na classificação de certos comportamentos como pecados…

E fico a cogitar comigo se não faz falta um “meio-termo”: nem tanto a mar nem tanto à terra. Há comportamentos – chame-se-lhes pecados, transgressões ou ilícitos – que, por violarem normas importantes de convivência social (para não incluir as práticas violadoras de leis e regulamentos adoptados pelos Estados), devem ser objecto de uma reflexão crítica entre pais e filhos, educadores e educandos, sacerdotes e leigos, nos diversos fóruns (mass media, palestras, conferências, ateliers), enfim, nos diversos contextos socio-educacionais, de natureza formal ou informal, induzindo as crianças e os jovens a assumir, conscientemente, posturas mais edificantes e construtivas.

Se tal acontecer, dar-se-á um passo importante na senda da educação moral e cívica, da formação pessoal e social, da educação para cidadania ou para valores, aspectos que nem sempre são tratados de forma adequada pelas instituições educativas.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Eu, deputado!



De 1981 a 1990, fui deputado ao parlamento cabo-verdiano, então denominado Assembleia Nacional Popular, o qual, a partir de 1991, ficou amputado da “perna”, digo, do termo Popular, passando a chamar-se, simplesmente, Assembleia Nacional. Dei o benefício da dúvida aos parlamentares que tomaram essa decisão: efectivamente, o termo Nacional (por abarcar todos quantos assumem a identidade cabo-verdiana, nas suas diversas dimensões (psicossociológica, antropológica, cultural, etc.) já abarca o Popular, e este, ainda que associado ao Nacional, pode afigurar-se restritivo, parecendo alinhar com a polémica concepção de democracia nacional revolucionária, presente nos discursos, que não na prática consequente, de então.

Desempenhei as funções de deputado num período de intensa vivência cívica, porventura mais do que de actividade político-partidária, apesar de, nesse período, ter desempenhado cargos dirigentes no partido que detinha a condição jurídico-constitucional de força política dirigente da sociedade e do Estado: o PAICV.
Palácio da Assembleia Nacional (Popular)

Estou certo que ninguém, inclusivamente os que, tendo estado, então, comigo nas lides parlamentares, viriam a passar para a outra força política emergente em 1990 (MpD), após a abertura política – abertura que, eu, em Fevereiro desse ano, enquanto porta-voz do Conselho Nacional do PAICV, tive o privilégio de anunciar, em primeira-mão, ao país, através da imprensa –, dizia eu, ninguém contestará o facto de que, como vários, exerci as minhas funções de deputado com “independência de pensamento e de acção” e elevado sentido de comprometimento com a causa do progresso do povo cabo-verdiano, sem me deixar tolher por interesses estritamente partidários, como se tornou curial desde o início da década de noventa do século passado!

Tendo integrado, de 1981 a 1985, a Comissão Especializada Permanente dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos, na qualidade de Secretário, já nos cinco anos seguintes, coube-me a presidência da mesma Comissão, cargo que aceitei não sem alguma resistência, posto que, na altura, ainda não era Jurista, ao passo que havia, na Comissão, dois juristas, que assumiram as funções de Vice-Presidente e Relator (Carlos Veiga e Aristides Lima, respectivamente). Na verdade, não fosse o incentivo dos dois juristas que, iniciando-se, na altura (ou seja em 1985), na actividade parlamentar, entendiam que eu era a pessoa mais indicada para o cargo, dada a minha experiência parlamentar, não o teria aceite. De todo o modo, a aceitação do cargo levou-me a tomar outra decisão: inscrever-me numa licenciatura em Direito, como aluno externo, da Universidade de Havana. A CEPACJ teve um papel central na dinamização da actividade legislativa e do controlo político da acção governativa, contribuindo, nomeadamente, para uma discussão aprofundada dos diplomas legais submetidos ao Parlamento ou sujeitos à ratificação deste.

Foram notas marcantes da minha passagem pelo Parlamento: o reforço da representatividade popular da Assembleia, com a entrada de cidadãos que não tinham o estatuto de “Combatente das Matas da Guiné” nem de alto dirigente do Estado; a afirmação do pluralismo de ideias no parlamento, com a tomada de decisões nem sempre concordantes com as da cúpula dirigente do Partido e do Governo; a forte assunção do mandato popular, com a colocação sistemática ao Governo das questões que afectavam as populações; a afirmação da função de controlo da actividade executiva e legislativa do Governo, com a alteração ou mesmo a recusa de ratificação de alguns diplomas governamentais; a liberalização da economia e a introdução de reformas relevantes nos domínios da educação, da saúde, do associativismo, da imprensa, etc.; o contributo para a democratização do regime e a preparação das condições jurídico-constitucionais e do ambiente político adequados à consagração do multipartidarismo em Cabo Verde, etc.

Debatendo-se, obviamente, com contradições internas, decorrentes, nomeadamente, da própria natureza de regime de partido único com ideais democráticos, o parlamento de então procurava assumir a centralidade da vida política nacional, com autonomia e identidade própria, o que não deixou de surpreender os países amigos, do ocidente ao oriente, do norte ao sul. Lembro-me de algumas reportagens saídas em jornais portugueses, que davam à estampa a constatação de que, em Cabo Verde, os deputados não eram meros “yes, man”, mas parlamentares que não se assumiam como meras caixas de ressonância do Governo, ainda que não se assumissem, a priori, contra as propostas governamentais, viabilizando-as na medida da sua pertinência e relevância para o país.

Bem, termino esta nota não sem antes manifestar o desejo de, um dia, termos em Cabo Verde um Parlamento com identidade própria e que não funcione apenas na lógica “do bom e do vilão”: tudo o que parte da “situação” (governo e partido que o suporta) é mau para a oposição, assim como o é também tudo quando parta da oposição, independentemente da bondade ou mesmo da cientificidade da proposta em debate.
Em verdade, em verdade vos digo: mal vai o Grupo Parlamentar que, em questões essenciais da vida nacional, forma a sua convicção ou vontade política apenas no sentido de contrariar a vontade do seu potencial adversário na luta pelo Poder, sem ter em conta as virtualidades da iniciativa, proposta ou ideia em discussão!

Chuva engraçada

Em Cabo Verde, a falta e a irregularidade das chuvas são abundantemente descritas em páginas da História do arquipélago, que igualmente dão ...