De 1981 a 1990, fui deputado ao parlamento cabo-verdiano, então denominado Assembleia Nacional Popular, o qual, a partir de 1991, ficou amputado da “perna”, digo, do termo Popular, passando a chamar-se, simplesmente, Assembleia Nacional. Dei o benefício da dúvida aos parlamentares que tomaram essa decisão: efectivamente, o termo Nacional (por abarcar todos quantos assumem a identidade cabo-verdiana, nas suas diversas dimensões (psicossociológica, antropológica, cultural, etc.) já abarca o Popular, e este, ainda que associado ao Nacional, pode afigurar-se restritivo, parecendo alinhar com a polémica concepção de democracia nacional revolucionária, presente nos discursos, que não na prática consequente, de então.
Desempenhei as funções de deputado num período de intensa vivência cívica, porventura mais do que de actividade político-partidária, apesar de, nesse período, ter desempenhado cargos dirigentes no partido que detinha a condição jurídico-constitucional de força política dirigente da sociedade e do Estado: o PAICV.
Palácio da Assembleia Nacional (Popular) |
Estou certo que ninguém, inclusivamente os que, tendo estado, então, comigo nas lides parlamentares, viriam a passar para a outra força política emergente em 1990 (MpD), após a abertura política – abertura que, eu, em Fevereiro desse ano, enquanto porta-voz do Conselho Nacional do PAICV, tive o privilégio de anunciar, em primeira-mão, ao país, através da imprensa –, dizia eu, ninguém contestará o facto de que, como vários, exerci as minhas funções de deputado com “independência de pensamento e de acção” e elevado sentido de comprometimento com a causa do progresso do povo cabo-verdiano, sem me deixar tolher por interesses estritamente partidários, como se tornou curial desde o início da década de noventa do século passado!
Tendo integrado, de 1981 a 1985, a Comissão Especializada Permanente dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos, na qualidade de Secretário, já nos cinco anos seguintes, coube-me a presidência da mesma Comissão, cargo que aceitei não sem alguma resistência, posto que, na altura, ainda não era Jurista, ao passo que havia, na Comissão, dois juristas, que assumiram as funções de Vice-Presidente e Relator (Carlos Veiga e Aristides Lima, respectivamente). Na verdade, não fosse o incentivo dos dois juristas que, iniciando-se, na altura (ou seja em 1985), na actividade parlamentar, entendiam que eu era a pessoa mais indicada para o cargo, dada a minha experiência parlamentar, não o teria aceite. De todo o modo, a aceitação do cargo levou-me a tomar outra decisão: inscrever-me numa licenciatura em Direito, como aluno externo, da Universidade de Havana. A CEPACJ teve um papel central na dinamização da actividade legislativa e do controlo político da acção governativa, contribuindo, nomeadamente, para uma discussão aprofundada dos diplomas legais submetidos ao Parlamento ou sujeitos à ratificação deste.
Foram notas marcantes da minha passagem pelo Parlamento: o reforço da representatividade popular da Assembleia, com a entrada de cidadãos que não tinham o estatuto de “Combatente das Matas da Guiné” nem de alto dirigente do Estado; a afirmação do pluralismo de ideias no parlamento, com a tomada de decisões nem sempre concordantes com as da cúpula dirigente do Partido e do Governo; a forte assunção do mandato popular, com a colocação sistemática ao Governo das questões que afectavam as populações; a afirmação da função de controlo da actividade executiva e legislativa do Governo, com a alteração ou mesmo a recusa de ratificação de alguns diplomas governamentais; a liberalização da economia e a introdução de reformas relevantes nos domínios da educação, da saúde, do associativismo, da imprensa, etc.; o contributo para a democratização do regime e a preparação das condições jurídico-constitucionais e do ambiente político adequados à consagração do multipartidarismo em Cabo Verde, etc.
Debatendo-se, obviamente, com contradições internas, decorrentes, nomeadamente, da própria natureza de regime de partido único com ideais democráticos, o parlamento de então procurava assumir a centralidade da vida política nacional, com autonomia e identidade própria, o que não deixou de surpreender os países amigos, do ocidente ao oriente, do norte ao sul. Lembro-me de algumas reportagens saídas em jornais portugueses, que davam à estampa a constatação de que, em Cabo Verde, os deputados não eram meros “yes, man”, mas parlamentares que não se assumiam como meras caixas de ressonância do Governo, ainda que não se assumissem, a priori, contra as propostas governamentais, viabilizando-as na medida da sua pertinência e relevância para o país.
Bem, termino esta nota não sem antes manifestar o desejo de, um dia, termos em Cabo Verde um Parlamento com identidade própria e que não funcione apenas na lógica “do bom e do vilão”: tudo o que parte da “situação” (governo e partido que o suporta) é mau para a oposição, assim como o é também tudo quando parta da oposição, independentemente da bondade ou mesmo da cientificidade da proposta em debate.
Em verdade, em verdade vos digo: mal vai o Grupo Parlamentar que, em questões essenciais da vida nacional, forma a sua convicção ou vontade política apenas no sentido de contrariar a vontade do seu potencial adversário na luta pelo Poder, sem ter em conta as virtualidades da iniciativa, proposta ou ideia em discussão!