- Quem foi que comeu todo o açúcar que tinha guardado aqui? – pergunta minha mãe Eduarda, a quem eu chamava Djodjô, contrariamente à minha irmã, a Branca, que lhe chamava mamã -, enquanto, com ar sério, aponta para a caneca de litro vazia.
- Eu não, mamã! – responde, rapidamente, minha irmãzinha, com firmeza.
- Eu também, não, Djodjo! – respondo eu, procurando parecer convincente.
- Olhem que é feio e é pecado mentir, além de que constitui outro pecado apossar-nos de coisa que não é nossa! Isso é furtar, é pecado!
Deus e o diabo - o conforto de que Ele é que vence! |
- Fui eu, Djodjô! Desculpa-me!
- Bem, desta vez passa, mas não volta a acontecer, certo?
Anuí, humilhado.
Cenas destas repetiam-se com frequência, tendo por objectos de furto as mais diversas guloseimas ou coisas resguardadas do uso desregrado ou não autorizado: açúcar da terra, mel, queijo, mancara, carne assada, torresmos, linguiça, chouriço, doces, etc, etc.
Mas não eram poucas as situações em que a Djodjô e o papá nem sequer se davam conta dos “estragos”, digo, dos “furtos” que fazíamos (eu, com mais frequência, e a minha irmã, uma vez ou outra, mas quase sempre cúmplice das minhas “incursões”), pois, precavidos, tirávamos, de cada vez, pequenas quantidades que não nos denunciavam facilmente, a não ser após várias reincidências.
Mas se a Djodjô e o pai não davam conta desses “furtos”, já Deus não os ignorava.
- Deus vê tudo, sabe tudo! – assim nos lembravam em casa, na vizinhança, na Catequese, nas Missas dominicais...
E, por isso, os muitos pecadilhos da minha meninice eram confessados, sistematicamente, aos meus confessores. Os meus colegas, tal como me diziam, faziam o mesmo. Não podíamos permanecer em pecado!
- Padre, eu pequei!
- Em que pecaste?
- Furtei açúcar de terra em casa…
-Estás arrependido?
- Sim, padre!
E vinham as absolvições, condicionadas pela observância imediata das penitências habituais, como, por exemplo, rezar um Pai-nosso, uma Ave-Maria, um Glória ao Pai… Ficava com a consciência tranquila, leve!
E, depois, tudo se repetia: as mesmas transgressões eram feitas, confessadas e objecto de penitências, ficando, tacitamente, assumido que bastava a “absolvição” para que ficassem apagados os “pecados” e o pequeno pecador “livre” para voltar a “pecar”, contanto que o "novo" pecado seja outra vez confessado.
Mas os pecados da minha meninice eram mais que muitos: dizer “palavrões” como “chissa” (chatice), “mentira”, “mentiroso”, “bu mai” (“tua mãe”) – tudo isso eram pecados que deveriam ser confessados.
O mesmo se passava com os furtos de coisas pertencentes a pessoas fora da família: uma laranja, um mango, um pedaço de cana-de-açúcar, etc., para mitigar a fome durante as idas e vindas de e para a escola…
Eram pecados que podiam levar ao "fogo do Inferno" se não fossem confessados. É certo que os padres recomendavam o arrependimento, mas, na prática, pouco interessava se os prevaricadores voltavam a reincidir: estando os pecados perdoados por quem representa Deus na Terra, isso bastava.
Hoje em dia, meus filhos, assim como os do estimado leitor destas linhas, não são instados a levar tão a sério como outrora uma série de transgressões a normas de convivência social.
Nem mesmo os sacerdotes são tão rigorosos como outrora na classificação de certos comportamentos como pecados…
E fico a cogitar comigo se não faz falta um “meio-termo”: nem tanto a mar nem tanto à terra. Há comportamentos – chame-se-lhes pecados, transgressões ou ilícitos – que, por violarem normas importantes de convivência social (para não incluir as práticas violadoras de leis e regulamentos adoptados pelos Estados), devem ser objecto de uma reflexão crítica entre pais e filhos, educadores e educandos, sacerdotes e leigos, nos diversos fóruns (mass media, palestras, conferências, ateliers), enfim, nos diversos contextos socio-educacionais, de natureza formal ou informal, induzindo as crianças e os jovens a assumir, conscientemente, posturas mais edificantes e construtivas.
Se tal acontecer, dar-se-á um passo importante na senda da educação moral e cívica, da formação pessoal e social, da educação para cidadania ou para valores, aspectos que nem sempre são tratados de forma adequada pelas instituições educativas.