quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Eu e a música!


Nasci com a música nos ouvidos! Não me refiro apenas às canções de ninar, tradicionais ou improvisadas, com que a minha mãe me mimoseava, e que eu, já rapaz de cinco ou seis anos de idade, ainda dela reclamava, pois me faziam tão bem!

Refiro-me também à música que provinha da natureza, com o cantar do galo, o cacarejar das galinhas, o piar dos pintainhos, o chilrear dos pássaros, o zurrar dos burros, o relinchar dos cavalos, etc.

Bem, nem todos os sons que vinham da natureza se me apresentavam como música: nos primeiros anos, tinha eu um pavor enorme das trovoadas que pareciam ser vozes de coléricos deuses e cujos efeitos tenebrosos procurávamos evitar, lá em casa, rezando à “Santa Bárbara, a generosa”, ao Deus Todo-Poderoso, ao “Santo António, o milagreiro”, e a outros santos, tal como nos ensinava a Djodjó, minha mãe! Mas, com o tempo, habituei-me a esses estrondos que vinham do céu, os quais passavam a soar aos meus ouvidos como primorosos fragmentos musicais. Daí até imitá-los foi um passo, resultando estranhas e contrastantes melodias, que a minha medrosa mãe reprovava, benzendo-se, ao mesmo tempo que me ameaçava com umas tapas!

O interesse pela música, nos primeiros anos, levou-me a realizar inúmeras experiências musicais arcaicas, com flautas, violões e tambores construídos a partir dos mais incríveis materiais locais. A título de exemplo, minha primeira flauta foi feita de pedaço de caniço e de teia de aranha! Meu primeiro rádio foi uma caixa de fósforos vazia, com pequenos buracos, dentro da qual eu colocava um inseto denominado “fonfom”, que emitia uma "música" algo furiosa, certamente devido à vontade que o prisioneiro tinha de se libertar. Enfim, um misto de pequena doce maldade!

Entretanto, a minha atração pela música foi evoluindo, passando a integrar, depois de alguns testes, o grupo coral da Igreja de São Domingos (Santiago), que atuava nas missas dominicais e ou festivas, e o grupo cultural de Bom Jardim, que cultivava a música, o teatro e a dança, sob a sábia direção de Ano Nobo, de seu nome próprio Fulgêncio. Este homem de cultura, que se destacou como músico e compositor de grande talento, mas que também era um poeta e dramaturgo de se tirar o chapéu, além de professor primário pro bono e instrutor de largas dezenas de adolescentes e jovens de São Domingos, entre os quais eu próprio, na arte musical e nas bases e técnicas da orquestração, com destaque para o violão, o cavaquinho e o violino.

O violão foi a minha preferência e, para a sua aprendizagem básica, servia-me de instrumentos que o próprio Ano Novo me emprestava, por longas semanas! Quando, aos 19 anos de idade, adquiri, na ilha da Brava, o meu primeiro violão, começou uma fase de dedicação mais regular ao treino com este instrumento, aproveitando as horas de ócio que se sucediam às horas de trabalho como professor, diretor de escola e delegado escolar. Regressado à ilha de Santiago e a S. Domingos, participei, com o meu violão, em vários ensaios e atuações, em meios profanos e religiosos, tendo por mestres o Ano Novo e o Padre Firmino.

Cheguei a ser o baixista do conjunto musical eletrónico “Os Camponeses”, de que faziam ainda parte, entre outros, o Nonó (saxofone, flauta, clarinete), o Lindorfo (viola solo), o Emanuel (viola ritmo), o Frank (percussão e voz) e o Fifi (voz), além de compositor de algumas canções, uma das quais era uma homenagem a Amílcar Cabral, que o Fifi interpretava soberbamente: “Pa tudo kau si nome corri/ Nós Amílcar ka ta morri/Del ninguém ka ta esquecê…”

Porém, as lides profissionais e académicas afastaram-me, quase completamente e por longos anos, da produção e da atividade musical. Poucas vezes toco ao violão, mas, quando o faço, ainda que sem a mestria de meus antigos colegas de tocatina, sinto-me transportado para uma espécie de quinta-essência, para um mundo algo paradisíaco, que vale a pena viver!

Em casa, continua à minha espera, ao canto de uma das salas, um amigo que chora e canta fantasticamente ao contacto com os meus longos dedos. Refiro-me ao meu atual violão, adquirido, em 2010, na cidade de Braga. Prometo reconciliar-me contigo, meu amigo, para fazer ressurgir, ainda que só para mim, o meu outro lado, sumamente reprimido, mas à espera de se soltar, com a inspiração das musas, sejam estas as nove filhas de Zeus e Mnemosine, sejam elas outras, mais terrenas, que as há!

Praia, Agosto de 2015.
Bartolomeu Varela

domingo, 31 de maio de 2015

Eu e a Religião!



Minha infância e adolescência foram profundamente influenciadas pelos valores da educação religiosa, aprendidos e postos em prática no ambiente familiar, na catequese, nas missas e nas diversas estruturas e da Igreja Católica, ao tempo existentes, sobretudo em São Domingos, Ilha de Santiago, meu torrão natal.

Tendo aprendido na família os rudimentos da religião e as primeiras orações, desde que me lembre, seguia, invariavelmente, o mesmo ritual que consistia em iniciar o dia com o "sinal da cruz" e uma breve oração, a que seguiam, à laia de cumprimentos, os pedidos de bênção aos meus pais, que mos concediam piedosamente:
- Deus te dê juízo e te acompanhe! - dizia, por vezes, o papá;
- Deus te  abençoe e te guarde!  - dizia, outras vezes, a Djodjó, minha mãe.

À mesa, antes de iniciarmos as refeições, era também hábito, lá em casa, uma breve prece, em que o pai ou a mãe agradecia a Deus e Lhe pedia que abençoasse os alimentos que iam ser servidos.

À noite, momentos antes de me recolher, em geral mais cedo do que os pais, fazia uma breve oração e, em seguida, desejava boa noite aos país, que correspondiam, acrescentando:
- Anjo da tua guarda te acompanhe!
- Deus te ilumine o caminho e te ajude !

Minha irmã, a Branca, mais nova, seguia na família os mesmos rituais e, tal como eu, aprendia os valores do amor a Deus e ao próximo, do respeito aos pais e aos mais velhos, da verdade e da bondade, etc.

O aprofundamento dos conhecimentos religiosos tinha lugar na catequese, a cargo de catequistas, normalmente pessoas que tinham frequentado a instrução primária e possuíam conhecimentos básicos da doutrina cristã, das diversas orações e dos rituais e valores católicos, que nos transmitiam com mestria, muita paciência, ainda que, por vezes, com o auxílio de alguns castigos físicos, ao estilo da educação tradicional.

A catequese preparou-me para participar adequadamente nas missas de domingo e, em particular, para receber os meus primeiros sacramentos - a confissão e a comunhão -, o que aconteceu na Igreja de São Domingos, quando
Igreja de São Domingos
tinha sete anos! Lembro-me bem  de ter ido à missa da primeira comunhão trajado de branco, como os demais colegas: calças compridas, camisa de mangas longas e sandálias brancas em plástico, estas últimas tão em voga na altura, sobretudo no seio das gentes mais humildes!

Após o sacramento do Crisma, e tendo já feito a 4ª classe do ensino primário, idealizei ser sacerdote, tendo, para o efeito, projetado continuar os estudos no Seminário de São José, na Praia! Meu Deus, como eu admirava os pequenos seminaristas de São Domingos, como o Isidoro e o Iate, quando, nas suas férias, tomavam parte nas missas de domingo, vestidos de fato e aparentando um ar celestial que os tornavam, aos meus olhos, seres especiais, mais próximos de Deus! Cheguei a apresentar-me no Seminário de São José para iniciar a formação, mas tive de desistir desse intento, admitindo, desde logo, que havia outras formas de me realizar como cristão e católico!
   
Assim, e porque ia evoluindo nos estudos, como aluno aplicado, a partir dos doze anos, fui incumbido de sucessivas responsabilidades na Igreja, como as de acólito (a quem incumbia assistir os padres no ofício da missa), ajudante de sacristão (função desempenhada durante largos anos pelo Pereira, também professor da escola paroquial), leitor das Escrituras, membro e presidente da Pré-JAC (uma espécie de "organização de pioneiros" da Juventude Católica), membro da Legião de Maria, catequista, membro e presidente da Juventude Católica, tendo, outrossim, participado em outras atividades organizadas no âmbito da Igreja, como as do grupo Coral, do grupo de Teatro e do primeiro Agrupamento Escutista de Cabo Verde, que contribuíram, de forma marcante, para a inovação da vida religiosa em São Domingos! Cabe, neste particular, salientar o papel de relevo desempenhado pelo Padre Firmino e por outras figuras da cultura, em São Domingos, como o Ano Novo e a Maria Alice! Graças a eles, a Igreja tornou-se mais jovem, mais alegre, mais atrativa e mais dinâmica! 

Não é propósito deste post entrar em detalhe sobre o meu percurso religioso (talvez volte ao assunto em outro momento). Resumindo esse percurso, um pouco antes do meu primeiro casamento, quando tinha apenas 21 anos, era já em mim forte a convicção de que, mais do que a observância formal das prescrições e dos rituais religiosos, o mais importante e mais difícil é assumir e pôr em prática, de forma consciente e consequente, os princípios e valores essenciais da religião e da moral religiosas, que podem resumir-se no Amor e na Fraternidade e no Cultivo do Bem. Na verdade, que(m) é Deus senão a expressão suprema do Amor e do Bem?

Enfim, tais valores, que aprendi no berço familiar e se consolidaram nas atividades da Igreja, continuaram, ao longo dos anos, e até ao momento (em que sou, assumidamente, menos ritualista), a servir de referência na minha postura perante a vida, tanto nos planos pessoal e familiar como nos da vida cívica, profissional e social.

domingo, 28 de junho de 2009

O meu primeiro dia de aulas na Escola da Variante


Fiz parte do primeiro contingente de mais de oitenta alunos, repartidos por ambos os sexos, que, após aprovação numas concorridíssimas provas de aptidão, inauguraram, no ano lectivo 1969/70, a Escola de Habilitação de Professores, sita em Variante, São Domingos, tendo por Director o professor António Ribeiro da Cunha, que se revelaria famoso, quer pela sua sólida e vasta formação (“Ele sabe tudo”! – dizíamos, apreciando a forma como ele versava connosco os mais diversos assuntos, com mestria e à-vontade e, sobretudo, com uma grande capacidade comunicativa), quer pelo seu exacerbado e implacável autoritarismo (“O menino fica em causa por quinze dias”! – dizia ele, calmamente, a um dado aluno que, por exemplo, retirasse do bananal da escola uma banana madura para saciar a fome).

O autor, ladeado de alguns dos antigos colegas da EHP






Mas, antes de entrarmos na Escola da Variante, eu e os meus colegas desconhecíamos estas características do Director Cunha, sobretudo a segunda. Foi no primeiro dia de aulas que me dei conta dos evidentes sinais de autoritarismo do Director quando ele, numa espécie de sessão de boas-vindas, se reuniu com a minha turma, a dos rapazes (Sim, os “alunos-mestres” estavam distribuídos por duas turmas, em função dos sexos, e raramente ambas as turmas se encontravam em aulas conjuntas). As regras e as advertências enunciadas pelo Director fizeram com que eu e os meus colegas, logo ao primeiro contacto, ficássemos com um receio enorme daquele homem, que, entretanto, e apesar de tudo, viria a marcar, positivamente, a nossa formação e as nossas vidas.

À primeira sessão, de introdução geral ao curso, seguiu-se a primeira experiência de trabalho "extra-escolar" (que iria multiplicar-se ao longo dos quatro anos de um curso que funcionava em regime de semi-internato, com oito horas diárias de aulas e não poucas horas de trabalhos rurais, de arborização, horticultura, etc, a cargo, sobretudo, dos rapazes, pois as meninas ocupavam-se dos chamados “lavores femininos”). Por ordem do Director, procedemos, naquele dias, à remoção dos calhaus que se encontravam ao longo do troço da estrada que ligava a estrada de Milho Branco à Escola de Habilitação de Professores.

Soubemos que, seguidamente a essa actividade laboral, não haveria aula, ou seja, teríamos uma folga. E o meu amigo e colega de peito, Zé-Maria, que não suportava ficar muito tempo sem comer, teve, logo, uma ideia brilhante:
- Vamos ao Milho Branco comprar doce de coco de Nha Doca!
- Mas, e a aula? Podemos chegar atrasados!
- Qual história, temos folga e é só uns instantes!
Acedi. Os doces de coco de Nha Doca eram, de facto, muito gostosos, tendo aliviado a nossa fome de rapazes do interior de Santiago, habituados a comer bem!
Não nos demorámos muito, mas, quando regressámos à Escola, qual não foi nosso espanto quando não vimos vivalma no pátio de recreio. Soubemos pelo Contínuo, o Binda, que o Director se encontrava novamente reunido com a turma dos rapazes! Ficámos arrepiados, de tanto medo. O sabor dos doces de coco tornou-se amargo.
- Entramos ou não entramos na sala? – perguntei ao Zé-Maria, que hesitava, tanto quanto eu.
A conselho do Binda, que nos ouvia e nos olhava com um ar simultaneamente brejeiro e misterioso, lá nos decidimos. E batemos à porta, abrindo-a, acto seguido:
-Dá licença, Sr. Director? – perguntei.
-Onde estavam os meninos?
- Fomos até ao Milho Branco comprar doces….
Ouviram-se gargalhadas galhofeiras dos colegas da turma.
- O quê?!
- Nós estávamos com fome e…
- O quê?!
- Nós estávamos com fome e, como não tínhamos aula, fomos ao Milho Branco, para comprar…
- O quê?!
-… Doce de coco!...
Novas gargalhadas interromperam-me, seguidas da pergunta do furibundo Director:
- O quê?!
Eu, desesperado, sem saber como explicar ao exasperado Director o que se tinha passado, e talvez duvidando que o meu português tivesse sido eloquente, atirei com a seguinte resposta, sem me dar conta de que me expressava em puro crioulo cabo-verdiano:
- Sr. Director nu staba cu fómi e pamódi nu ca tinha aula, nu bá cumpra dóci de coco na Midjo Brancu!

Ouviu-se da turma uma estrondosa e interminável gargalhada, a que se seguiu um pesado silêncio.
O Director, que nos olhava com um ar terrível, quis balbuciar uma frase, que não chegou a sair-lhe da boca.
Enquanto isso, eu e o Zé-Maria permanecíamos à porta da sala, à espera da sentença.
-Vamos ser expulsos da Escola! - cochicha-me o Zé-Maria!
Confesso que, lá no meu íntimo, eu esperava isso mesmo do furibundo Director!
- Vão sentar-se! – explode ele, por fim.
Sentámo-nos, humilhados e destroçados, à espera de alguma ordem de expulsão ou, sei lá, de fuzilamento, mas nada disso aconteceu, tendo o Director, já refeito do choque, retomado a aula que havíamos interrompido. Não entendi nada do que ele dizia, e o mesmo aconteceu com o meu colega de infortúnio, Zé-Maria, como este me diria, mais tarde.

Mas esse dia, marcado pelo vexame decorrente do facto de falar crioulo numa aula de português dum curso de formação de professores, ficou para sempre gravado na minha memória.

Chuva engraçada

Em Cabo Verde, a falta e a irregularidade das chuvas são abundantemente descritas em páginas da História do arquipélago, que igualmente dão ...