domingo, 31 de maio de 2015

Eu e a Religião!



Minha infância e adolescência foram profundamente influenciadas pelos valores da educação religiosa, aprendidos e postos em prática no ambiente familiar, na catequese, nas missas e nas diversas estruturas e da Igreja Católica, ao tempo existentes, sobretudo em São Domingos, Ilha de Santiago, meu torrão natal.

Tendo aprendido na família os rudimentos da religião e as primeiras orações, desde que me lembre, seguia, invariavelmente, o mesmo ritual que consistia em iniciar o dia com o "sinal da cruz" e uma breve oração, a que seguiam, à laia de cumprimentos, os pedidos de bênção aos meus pais, que mos concediam piedosamente:
- Deus te dê juízo e te acompanhe! - dizia, por vezes, o papá;
- Deus te  abençoe e te guarde!  - dizia, outras vezes, a Djodjó, minha mãe.

À mesa, antes de iniciarmos as refeições, era também hábito, lá em casa, uma breve prece, em que o pai ou a mãe agradecia a Deus e Lhe pedia que abençoasse os alimentos que iam ser servidos.

À noite, momentos antes de me recolher, em geral mais cedo do que os pais, fazia uma breve oração e, em seguida, desejava boa noite aos país, que correspondiam, acrescentando:
- Anjo da tua guarda te acompanhe!
- Deus te ilumine o caminho e te ajude !

Minha irmã, a Branca, mais nova, seguia na família os mesmos rituais e, tal como eu, aprendia os valores do amor a Deus e ao próximo, do respeito aos pais e aos mais velhos, da verdade e da bondade, etc.

O aprofundamento dos conhecimentos religiosos tinha lugar na catequese, a cargo de catequistas, normalmente pessoas que tinham frequentado a instrução primária e possuíam conhecimentos básicos da doutrina cristã, das diversas orações e dos rituais e valores católicos, que nos transmitiam com mestria, muita paciência, ainda que, por vezes, com o auxílio de alguns castigos físicos, ao estilo da educação tradicional.

A catequese preparou-me para participar adequadamente nas missas de domingo e, em particular, para receber os meus primeiros sacramentos - a confissão e a comunhão -, o que aconteceu na Igreja de São Domingos, quando
Igreja de São Domingos
tinha sete anos! Lembro-me bem  de ter ido à missa da primeira comunhão trajado de branco, como os demais colegas: calças compridas, camisa de mangas longas e sandálias brancas em plástico, estas últimas tão em voga na altura, sobretudo no seio das gentes mais humildes!

Após o sacramento do Crisma, e tendo já feito a 4ª classe do ensino primário, idealizei ser sacerdote, tendo, para o efeito, projetado continuar os estudos no Seminário de São José, na Praia! Meu Deus, como eu admirava os pequenos seminaristas de São Domingos, como o Isidoro e o Iate, quando, nas suas férias, tomavam parte nas missas de domingo, vestidos de fato e aparentando um ar celestial que os tornavam, aos meus olhos, seres especiais, mais próximos de Deus! Cheguei a apresentar-me no Seminário de São José para iniciar a formação, mas tive de desistir desse intento, admitindo, desde logo, que havia outras formas de me realizar como cristão e católico!
   
Assim, e porque ia evoluindo nos estudos, como aluno aplicado, a partir dos doze anos, fui incumbido de sucessivas responsabilidades na Igreja, como as de acólito (a quem incumbia assistir os padres no ofício da missa), ajudante de sacristão (função desempenhada durante largos anos pelo Pereira, também professor da escola paroquial), leitor das Escrituras, membro e presidente da Pré-JAC (uma espécie de "organização de pioneiros" da Juventude Católica), membro da Legião de Maria, catequista, membro e presidente da Juventude Católica, tendo, outrossim, participado em outras atividades organizadas no âmbito da Igreja, como as do grupo Coral, do grupo de Teatro e do primeiro Agrupamento Escutista de Cabo Verde, que contribuíram, de forma marcante, para a inovação da vida religiosa em São Domingos! Cabe, neste particular, salientar o papel de relevo desempenhado pelo Padre Firmino e por outras figuras da cultura, em São Domingos, como o Ano Novo e a Maria Alice! Graças a eles, a Igreja tornou-se mais jovem, mais alegre, mais atrativa e mais dinâmica! 

Não é propósito deste post entrar em detalhe sobre o meu percurso religioso (talvez volte ao assunto em outro momento). Resumindo esse percurso, um pouco antes do meu primeiro casamento, quando tinha apenas 21 anos, era já em mim forte a convicção de que, mais do que a observância formal das prescrições e dos rituais religiosos, o mais importante e mais difícil é assumir e pôr em prática, de forma consciente e consequente, os princípios e valores essenciais da religião e da moral religiosas, que podem resumir-se no Amor e na Fraternidade e no Cultivo do Bem. Na verdade, que(m) é Deus senão a expressão suprema do Amor e do Bem?

Enfim, tais valores, que aprendi no berço familiar e se consolidaram nas atividades da Igreja, continuaram, ao longo dos anos, e até ao momento (em que sou, assumidamente, menos ritualista), a servir de referência na minha postura perante a vida, tanto nos planos pessoal e familiar como nos da vida cívica, profissional e social.

domingo, 28 de junho de 2009

O meu primeiro dia de aulas na Escola da Variante


Fiz parte do primeiro contingente de mais de oitenta alunos, repartidos por ambos os sexos, que, após aprovação numas concorridíssimas provas de aptidão, inauguraram, no ano lectivo 1969/70, a Escola de Habilitação de Professores, sita em Variante, São Domingos, tendo por Director o professor António Ribeiro da Cunha, que se revelaria famoso, quer pela sua sólida e vasta formação (“Ele sabe tudo”! – dizíamos, apreciando a forma como ele versava connosco os mais diversos assuntos, com mestria e à-vontade e, sobretudo, com uma grande capacidade comunicativa), quer pelo seu exacerbado e implacável autoritarismo (“O menino fica em causa por quinze dias”! – dizia ele, calmamente, a um dado aluno que, por exemplo, retirasse do bananal da escola uma banana madura para saciar a fome).

O autor, ladeado de alguns dos antigos colegas da EHP






Mas, antes de entrarmos na Escola da Variante, eu e os meus colegas desconhecíamos estas características do Director Cunha, sobretudo a segunda. Foi no primeiro dia de aulas que me dei conta dos evidentes sinais de autoritarismo do Director quando ele, numa espécie de sessão de boas-vindas, se reuniu com a minha turma, a dos rapazes (Sim, os “alunos-mestres” estavam distribuídos por duas turmas, em função dos sexos, e raramente ambas as turmas se encontravam em aulas conjuntas). As regras e as advertências enunciadas pelo Director fizeram com que eu e os meus colegas, logo ao primeiro contacto, ficássemos com um receio enorme daquele homem, que, entretanto, e apesar de tudo, viria a marcar, positivamente, a nossa formação e as nossas vidas.

À primeira sessão, de introdução geral ao curso, seguiu-se a primeira experiência de trabalho "extra-escolar" (que iria multiplicar-se ao longo dos quatro anos de um curso que funcionava em regime de semi-internato, com oito horas diárias de aulas e não poucas horas de trabalhos rurais, de arborização, horticultura, etc, a cargo, sobretudo, dos rapazes, pois as meninas ocupavam-se dos chamados “lavores femininos”). Por ordem do Director, procedemos, naquele dias, à remoção dos calhaus que se encontravam ao longo do troço da estrada que ligava a estrada de Milho Branco à Escola de Habilitação de Professores.

Soubemos que, seguidamente a essa actividade laboral, não haveria aula, ou seja, teríamos uma folga. E o meu amigo e colega de peito, Zé-Maria, que não suportava ficar muito tempo sem comer, teve, logo, uma ideia brilhante:
- Vamos ao Milho Branco comprar doce de coco de Nha Doca!
- Mas, e a aula? Podemos chegar atrasados!
- Qual história, temos folga e é só uns instantes!
Acedi. Os doces de coco de Nha Doca eram, de facto, muito gostosos, tendo aliviado a nossa fome de rapazes do interior de Santiago, habituados a comer bem!
Não nos demorámos muito, mas, quando regressámos à Escola, qual não foi nosso espanto quando não vimos vivalma no pátio de recreio. Soubemos pelo Contínuo, o Binda, que o Director se encontrava novamente reunido com a turma dos rapazes! Ficámos arrepiados, de tanto medo. O sabor dos doces de coco tornou-se amargo.
- Entramos ou não entramos na sala? – perguntei ao Zé-Maria, que hesitava, tanto quanto eu.
A conselho do Binda, que nos ouvia e nos olhava com um ar simultaneamente brejeiro e misterioso, lá nos decidimos. E batemos à porta, abrindo-a, acto seguido:
-Dá licença, Sr. Director? – perguntei.
-Onde estavam os meninos?
- Fomos até ao Milho Branco comprar doces….
Ouviram-se gargalhadas galhofeiras dos colegas da turma.
- O quê?!
- Nós estávamos com fome e…
- O quê?!
- Nós estávamos com fome e, como não tínhamos aula, fomos ao Milho Branco, para comprar…
- O quê?!
-… Doce de coco!...
Novas gargalhadas interromperam-me, seguidas da pergunta do furibundo Director:
- O quê?!
Eu, desesperado, sem saber como explicar ao exasperado Director o que se tinha passado, e talvez duvidando que o meu português tivesse sido eloquente, atirei com a seguinte resposta, sem me dar conta de que me expressava em puro crioulo cabo-verdiano:
- Sr. Director nu staba cu fómi e pamódi nu ca tinha aula, nu bá cumpra dóci de coco na Midjo Brancu!

Ouviu-se da turma uma estrondosa e interminável gargalhada, a que se seguiu um pesado silêncio.
O Director, que nos olhava com um ar terrível, quis balbuciar uma frase, que não chegou a sair-lhe da boca.
Enquanto isso, eu e o Zé-Maria permanecíamos à porta da sala, à espera da sentença.
-Vamos ser expulsos da Escola! - cochicha-me o Zé-Maria!
Confesso que, lá no meu íntimo, eu esperava isso mesmo do furibundo Director!
- Vão sentar-se! – explode ele, por fim.
Sentámo-nos, humilhados e destroçados, à espera de alguma ordem de expulsão ou, sei lá, de fuzilamento, mas nada disso aconteceu, tendo o Director, já refeito do choque, retomado a aula que havíamos interrompido. Não entendi nada do que ele dizia, e o mesmo aconteceu com o meu colega de infortúnio, Zé-Maria, como este me diria, mais tarde.

Mas esse dia, marcado pelo vexame decorrente do facto de falar crioulo numa aula de português dum curso de formação de professores, ficou para sempre gravado na minha memória.

domingo, 12 de abril de 2009

Os pecados da minha meninice


- Quem foi que comeu todo o açúcar que tinha guardado aqui? – pergunta minha mãe Eduarda, a quem eu chamava Djodjô, contrariamente à minha irmã, a Branca, que lhe chamava mamã -, enquanto, com ar sério, aponta para a caneca de litro vazia.
- Eu não, mamã! – responde, rapidamente, minha irmãzinha, com firmeza.
- Eu também, não, Djodjo! – respondo eu, procurando parecer convincente.
- Olhem que é feio e é pecado mentir, além de que constitui outro pecado apossar-nos de coisa que não é nossa! Isso é furtar, é pecado!

Deus e o diabo - o conforto de que Ele é que vence!
A esta palavra, que me fazia pensar num Deus descontente, a contrastar com um Diabo que esfregava as mãos de contente face à expectativa de encontrar companhia no fogo do Inferno, para onde ia condenado quem vivesse e morresse em pecado, eu não tive outro remédio senão confessar, procurando não chorar antes do tempo:
- Fui eu, Djodjô! Desculpa-me!
- Bem, desta vez passa, mas não volta a acontecer, certo?
Anuí, humilhado.

Cenas destas repetiam-se com frequência, tendo por objectos de furto as mais diversas guloseimas ou coisas resguardadas do uso desregrado ou não autorizado: açúcar da terra, mel, queijo, mancara, carne assada, torresmos, linguiça, chouriço, doces, etc, etc.

Mas não eram poucas as situações em que a Djodjô e o papá nem sequer se davam conta dos “estragos”, digo, dos “furtos” que fazíamos (eu, com mais frequência, e a minha irmã, uma vez ou outra, mas quase sempre cúmplice das minhas “incursões”), pois, precavidos, tirávamos, de cada vez, pequenas quantidades que não nos denunciavam facilmente, a não ser após várias reincidências.

Mas se a Djodjô e o pai não davam conta desses “furtos”, já Deus não os ignorava.
- Deus vê tudo, sabe tudo! – assim nos lembravam em casa, na vizinhança, na Catequese, nas Missas dominicais...

E, por isso, os muitos pecadilhos da minha meninice eram confessados, sistematicamente, aos meus confessores. Os meus colegas, tal como me diziam, faziam o mesmo. Não podíamos permanecer em pecado!
- Padre, eu pequei!
- Em que pecaste?
- Furtei açúcar de terra em casa…
-Estás arrependido?
- Sim, padre!
E vinham as absolvições, condicionadas pela observância imediata das penitências habituais, como, por exemplo, rezar um Pai-nosso, uma Ave-Maria, um Glória ao Pai… Ficava com a consciência tranquila, leve!

E, depois, tudo se repetia: as mesmas transgressões eram feitas, confessadas e objecto de penitências, ficando, tacitamente, assumido que bastava a “absolvição” para que ficassem apagados os “pecados” e o pequeno pecador “livre” para voltar a “pecar”, contanto que o "novo" pecado seja outra vez confessado.

Mas os pecados da minha meninice eram mais que muitos: dizer “palavrões” como “chissa” (chatice), “mentira”, “mentiroso”, “bu mai” (“tua mãe”) – tudo isso eram pecados que deveriam ser confessados.

O mesmo se passava com os furtos de coisas pertencentes a pessoas fora da família: uma laranja, um mango, um pedaço de cana-de-açúcar, etc., para mitigar a fome durante as idas e vindas de e para a escola…

Eram pecados que podiam levar ao "fogo do Inferno" se não fossem confessados. É certo que os padres recomendavam o arrependimento, mas, na prática, pouco interessava se os prevaricadores voltavam a reincidir: estando os pecados perdoados por quem representa Deus na Terra, isso bastava.

Hoje em dia, meus filhos, assim como os do estimado leitor destas linhas, não são instados a levar tão a sério como outrora uma série de transgressões a normas de convivência social.

Nem mesmo os sacerdotes são tão rigorosos como outrora na classificação de certos comportamentos como pecados…

E fico a cogitar comigo se não faz falta um “meio-termo”: nem tanto a mar nem tanto à terra. Há comportamentos – chame-se-lhes pecados, transgressões ou ilícitos – que, por violarem normas importantes de convivência social (para não incluir as práticas violadoras de leis e regulamentos adoptados pelos Estados), devem ser objecto de uma reflexão crítica entre pais e filhos, educadores e educandos, sacerdotes e leigos, nos diversos fóruns (mass media, palestras, conferências, ateliers), enfim, nos diversos contextos socio-educacionais, de natureza formal ou informal, induzindo as crianças e os jovens a assumir, conscientemente, posturas mais edificantes e construtivas.

Se tal acontecer, dar-se-á um passo importante na senda da educação moral e cívica, da formação pessoal e social, da educação para cidadania ou para valores, aspectos que nem sempre são tratados de forma adequada pelas instituições educativas.

Chuva engraçada

Em Cabo Verde, a falta e a irregularidade das chuvas são abundantemente descritas em páginas da História do arquipélago, que igualmente dão ...