A minha relação com a Política foi inicialmente caracterizada pelo receio e um certo medo. Ainda garoto, com os meus seis anos, ouvia falar de Políticos como sendo de gente conflituosa, de tal sorte que apelidar uma pessoa de político era quase o mesmo que insultá-la.
Amílcar Cabral |
Tinha talvez os meus quinze anos quando, numa dessas conversas, um dos adultos, o Honorato, me falou, ao ouvido, da Rádio Libertação, onde se podia saber tudo sobre Cabral e a Luta. Curioso, pergunto: "Que tipo de Luta"? Então, de modo confuso, fiquei a saber da existência de uma Luta de Libertação nas matas da Guiné, dos combatentes, da luta clandestina em Cabo Verde, de alguns presos políticos. Foi ainda através do Honorato que, mais tarde, vim a saber que um conhecido filho de São Domingos, da Ilha de Santiago, donde sou natural, era um preso político: "Olha, o Filinto foi preso porque fazia luta clandestina!"
Bem, a partir dessas conversas, a curiosidade, aliada à cautela, leva-me a procurar um aparelho de rádio, que obtive por empréstimo do vizinho Tchontcha, pois que em casa não havia ainda esse instrumento de comunicação. Pude acompanhar várias emissões da Rádio Libertação e, algumas vezes, escutei, com emoção, extractos de mensagens de Cabral dirigidas aos combatentes e ao povo da Guiné e de Cabo Verde.
Comecei a fazer uma ideia menos fantasiosa de Cabral, ainda que mais heroica e porventura mais mítica dele, e a adquirir um conceito mais acertado de Política, como uma actividade que visava o bem da nossa terra e do nosso povo, ainda que se me apresentasse, inicialmente, na sua vertente essencialmente subversiva.
Os tempos de estudante na Escola de Habilitação de Professores (EHP), na Variante, foram frutíferos em termos de aprendizagem de rudimentos da política, não propriamente através da leitura de livros, mas de conversas informais entre estudantes, alguns dos quais estavam sempre a par de notícias mais ou menos frescas sobre a luta de libertação nacional, Cabral, presos políticos, informadores da PIDE (alguns dos quais professores da escola), etc.
E, assim, quando andava no quarto ano da Escola da Variante, eu era, convicta e secretamente, um "simpatizante" de Cabral, razão por que foi com enorme tristeza, mas também com incredibilidade, que soube da notícia do seu assassinato. Na verdade, acabei ficando com a secreta esperança de que Cabral não morrera, sobretudo quando um dia um colega me deu a conhecer um panfleto em que se podia ler "Kabral ka Mori", expressão que também vim a ouvir de uma ou outra emissão da Rádio Libertação, que, entretanto, deixara de ouvir com a frequência habitual desde o dia em que certo comerciante de São Domingos, com um ar muito sério, foi falar com a minha mãe, alertando-a de que eu tinha de tomar cuidado, pois suspeitava-se de que ouvia as emissões dessa "rádio que fala contra a Nação"!
Enquanto melhor aluno da EHP, eu tinha o direito de discursar na cerimónia solene da investidura como professor diplomado, mas declinei o convite, justificando-me com o facto de que não tinha tempo para preparar o discurso, já que tinha de preparar aulas (na verdade, tendo sido dos primeiros a concluir o curso, fui, logo a seguir, indigitado para substituir uma das minhas professoras, que leccionava uma quarta classe em São Domingos), mas foi um pretexto que arranjei a fim de não ser obrigado a fazer um discurso de louvor à Pátria portuguesa!...
Não obstante, juntamente com outros estudantes cabo-verdianos, fui premiado, após o curso, com uma visita a Portugal, para onde convergiram estudantes de outras províncias ultramarinas. O convívio com estudantes portugueses e das colónias foi excelente, tendo-me marcado o contacto com um deles, creio que de Timor, que não conseguia esconder a sua condição de anti-colonialista.
Soube mais tarde que, apesar de ser uma pessoa discreta, as minhas atitudes enquanto estudante nada subserviente, os meus contactos com pessoas consideradas "pouco recomendáveis" (em Cabo Verde e em Portugal) tinham-me referenciado como alguém que deveria ser mantido sob "observação". Daí que, como me alertou o próprio colega indigitado para me "seguir", fui nomeado para trabalhar na Brava como professor, director da Escola Central Sena Barcelos e delegado escolar, não tanto como prémio, mas também como medida de prevenção. O professor incumbido de "informar" a PIDE a meu respeito era, porém, um grande amigo, pelo que me alertou, em confidência, no sentido de tomar as devidas cautelas, nomeadamente com certas autoridades da ilha.
Isso não impediu que eu fosse alvo de um inquérito, de que saí ilibado de qualquer infracção, antes elogiado, por ter injustificado as faltas dadas por alguns professores que, sem minha autorização, faltaram a aulas para participarem num acto de homenagem a uma figura destacada do colonial-fascismo português, para que foram convidados pelo Administrador do concelho, o qual se "esqueceu", no entanto, de me convidar para o acto ou, ao menos, de pedir-me que, enquanto Delegado Escolar, concedesse dispensa de serviço a tais professores.
Segundo soube, o Chefão da ilha ficou desgostoso com o desfecho da queixa, por ele apresentada, prometendo que me iria "apanhar um dia desses". Só que esse dia não apareceria jamais, pois que, menos de dois meses depois, acontece o 25 de Abril, a chamada Revolução dos Cravos, em Portugal, que inaugura uma etapa nova na minha relação com a Política, marcada por uma intensa militância política e cívica em prol da Independência, do Progresso e da Democracia em Cabo Verde.
Sem ter, jamais, abandonado a minha grande paixão, que foi e é a Educação, estive, assim, durante cerca de doze anos, na chamada política activa, desempenhando diversos cargos e responsabilidades, nomeadamente enquanto dirigente partidário a nível nacional e regional, como deputado da Nação e, em particular, na luta pela instauração da democracia pluripartidária em Cabo Verde. Fi-lo com elevado sentido da ética e da moral, com patriotismo, espírito de justiça e de solidariedade humana, mantendo-me igual a mim próprio...
Escrevo este apontamento a 13 de Janeiro de 2009, decretado Dia da Liberdade e da Democracia em Cabo Verde. Este dia encontra-me arredado da política activa, o que acontece desde há mais de 15 anos, por ter chegado à conclusão de que, apesar de apreciar a boa Política, enquanto ciência e arte de governar, não podia sentir-me realizado com a maneira de fazer política inaugurada com o despontar da chamada "II República", em 1990/11: a lógica da "destruição" e perseguição do adversário político; a tentativa ou a prática mais ou menos subtil de marginalização das pessoas em função da sua cor política; a atitude de considerar que é mau ou bom tudo o que vem da formação política adversária são "racionalidades" que não se encaixavam e continuam a não encaixar-se na minha maneira de ser e estar na vida. Daí que continue a trabalhar por Cabo Verde fora do quadro partidário, dando, porém, o meu melhor, enquanto patriota e profissional, para o progresso do povo das ilhas, que continua a querer um poema (digo, uma política) diferente para o povo das ilhas!
Bartolomeu Varela