domingo, 13 de outubro de 2024

Chuva engraçada

Em Cabo Verde, a falta e a irregularidade das chuvas são abundantemente descritas em páginas da História do arquipélago, que igualmente dão conta das crises agrícolas e mortandades decorrentes desse fenômeno.

Mas quando chove razoavelmente, o arquipélago sofre uma grande metamorfose, não só na paisagem, que se torna verdejante, mas também na economia e na vida dos cabo-verdianos.

Daí que a queda da Chuva seja, em geral, tão alegremente recebida pelos cabo-verdianos, a ponto de a considerarem "Chuva Amiga", como escreveu Amilcar Cabral.

Acontece que a queda irregular das chuvas ocorre não só em termos de variação no tempo mas também no que tange à precipitação no espaço. Neste último quesito, a desigual distribuição espacial da Chuva  apresenta, por vezes, contornos engraçados.  

Exemplifico com um caso ocorrido comigo há muitos anos.

Certa vez, à porta da Farmácia Africana, com medicamentos recém-comprados na mão, esperava eu que deixasse de chover, a fim de passar para o outro lado da Avenida Amílcar Cabral, onde deveria apanhar o autocarro, rumo à Achada Santo António.

Nisto, uma moça, que se encontrava na paragem do autocarro, ao lado da então Casa D. Celina Vasconcelos, grita para mim:

-Hei, mos, ben pa li, txuba ka sta txobi li nau.

-Modi? - indaguei, incrédulo.

-Ben, mos! Ala otokaru ta ben!


Hesitei. Olhei para ela, que não estava encharcada, e, zás, corri para o outro lado, quase sem me molhar. Ela não tinha mentido: o outro lado da rua estava seco!

- N-ka fla-ba bo? - diz-me a miúda.

- Verdadi go, obrigadu! - respondo eu, com um largo sorriso de incredulidade.

Apanhei tranquilamente o autocarro e, sentado no lado esquerdo do veículo, pude apreciar esse fenómeno engraçado: chovia na metade da Avenida e a outra permanecia seca.

Praia, 13 de outubro de 2024.

Bartolomeu Varela 


domingo, 29 de setembro de 2024

Eu e a Igreja Católica de São Domingos

Na sequência do artigo "Eu e a Religião", publicado nesta página, há nove anos, retomo aqui algumas memórias relacionadas com a minha vivência cristã, com foco no meu relacionamento com a Igreja.

Nasci, cresci e me fiz homem em simbiose com a Igreja Católica de São Nicolau Tolentino, sita em Várzea da Igreja, São Domingos. Não me refiro à nova e imponente Igreja de São Domingos, recentemente inaugurada, mas à antiga e também linda igreja da minha infância e juventude.

      Antiga Igreja Católica de São Domingos

Aos 5 dias de idade, fui levado à Igreja para ser batizado na fé cristã, iniciando-se, assim, precocemente, o processo da minha formação e desenvolvimento como cristão. Obviamente, não podia estar ciente da opção feita pelos meus pais, que, entretanto, se apressaram em tornar-me cristão, a fim de evitar que eu morresse “mouro”, pois, como me contaram, logo após o nascimento, fiquei doente e receavam um desenlace fatal, apesar das constantes preces e do recurso às receitas da medicina tradicional, de que minha mãe era pródiga e com as quais salvou muitas vidas, incluindo as que se encontravam em risco por mor da feitiçaria, que teria sido o meu caso.

Seja como for, aos 7 anos, após as elucidações domésticas e a educação catequética, estava, precocemente, a par do que significavam, no essencial a fé e a condição cristãs, pelo que fiz, com entusiasmo, a minha Primeira Confissão, seguida da minha Primeira Comunhão, na Igreja Católica de São Domingos.

Aos 12 ou 13 anos recebi a Confirmação na Fé Cristã, através do Sacramento do Crisma, ministrado na Igreja Paroquial de São Domingos pelo então Bispo da Diocese, Dom José Filipe do Carmo Colaço.

Na verdade, o meu Sacramento do Crisma tem o seu quê de particular: como já possuía um nível de escolaridade que me permitia fazer a minha autopreparação para o exame de admissão ao Sacramento, fui incumbido de ser o formador das demais pessoas da minha aldeia, incluindo a minha mãe e pessoas mais idosas. Acabámos - formador e formandos - por ser crismados juntamente!

Afastada a possibilidade de ingressar no Seminário de São José, na Praia, no qual me apresentei em setembro 1966, sob o impulso do Padre Campos, nem por isso ficou desvanecida a minha forte participação na vida religiosa, que chegou a ser marcada, nomeadamente, pela participação diária nas missas matinais, na qualidade de acólito.

Na verdade, a Igreja Católica de São Domingos foi o locus do meu desenvolvimento espiritual e humano, conjuntamente com o Salão Paroquial, diligentemente edificado sob os auspícios do Padre António Figueira Pinto, com o contributo decisivo dos paroquianos, em especial de figuras de proa do laicado local, como Maria Alice, Ano Novo, Margarida Barros, Cecílio Correia (Morgado), António Denti d'Ooru, entre muitos outros, que assumiram o desafio de fundar o teatro em S. Domingos e organizar numerosos eventos culturais nas imediações da Igreja, logrando, deste modo, contribuir, com os fundos angariados, para o financiamento do Salão.

Nesses dois espaços, e até aos meus 20 anos, desempenhei ativamente diversas funções religiosas e socioreligiosas, como acólito e ajudante do Sacristão, membro dos grupos coral e de teatro, presidente da pré-JAC (Juventude Católica infantil), membro e secretário da Legião de Maria, catequista, escuteiro, etc., culminando, aos 22 anos de idade, com o primeiro casamento.

A partir dos 22 anos, deixei de residir permanentemente em São Domingos, o que fez mudar radicalmente a minha relação com a Igreja do meu torrão natal, que também mudou, passando a ser um património religioso valioso e de grande centralidade no panorama local.

      A centralidade da nova Igreja Católica de São Domingos


      Imagem da nova Igreja Católica de São Domingos


       Imagem de uma procissão em direção â nova Igreja

Efetivamente, com a mudança da minha residência habitual de São Domingos para a Vila de Nova Sintra, na Brava (outubro de 1976) e, sucessivamente, para as cidades da Praia (setembro de 1979), de S. Filipe do Fogo (setembro de 1981) e, novamente para a capital, a partir de 1984, mantive uma relação menos frequente com a Igreja Católica, em particular com a de S. Domingos, o locus da minha iniciação cristã e do meu posterior desenvolvimento na fé católica.  

Passei a ser um cristão e católico menos ritualista, mas de sólidas convicções religiosas, empenhado, sobretudo, em colocar em prática as premissas essenciais da religião católica, que se assentam na prática do Bem e no cultivo do Amor a Deus e ao Próximo.

Evito entrar em polémicas sobre questões relativamente às quais a Igreja não parece estar preparada e que, por isso mesmo, são passíveis de provocar fraturas no tecido religioso, como: o celibato do sacerdote como opção e não como imperativo absoluto; a possibilidade de ordenação sacerdotal de mulheres; a regulação das condições em que é admitido o divórcio em casamentos religiosos; a redução de rituais, nomeadamente os que são desnecessariamente repetitivos; a eliminação ou redução de práticas de  excessiva veneração de santo/as (abeirando-se  do seu endeusamento), amiúde em detrimento da oração e veneração ao próprio Deus.

Considero, por exemplo, que é salutar ir às missas e participar nas atividades que lhes conferem sentido religioso, à luz da fé e da doutrina católicas, mas entendo que mais importante que ir à missa é o cultivo da Palavra de Deus, em especial dos já referidos valores do Bem e do Amor, que verdadeiramente sintetizam a essência divina. 

Praia, setembro de 2024

Bartolomeu Lopes Varela 

domingo, 4 de agosto de 2024

O Namoro na minha Infância

Criado e educado, como muitos da minha geração, em ambiente familiar e social marcado por sólidos princípios da moral  e religião católicas,  de acordo os quais a relação sexual antes do matrimónio constituía um pecado grave, o namoro casto não era proibido, mas tolerado ou apoiado pelos padres e catequistas, pelos pais e pelos mais velhos.

Por namoro casto entendia-se uma relação de afeto em que rapazes e moças não deviam ter relações sexuais antes do casamento, pelo que, em regra, devia acontecer sem demasiada intimidade física. 

Assim, o namoro entre miúdos iniciava-se com troca de cartas, bilhetes, flores, pequenas prendas, olhares ternos ou piscar de olhos, neste caso, sobretudo por moços mais afoitos.


Entre adolescentes e jovens, admitia-se alguma aproximação física entre os namorados, mas o namoro teria de acontecer com o necessário pudor e respeito para com terceiros, admitindo-se, entretanto, inocentes e púdicas trocas de carinho, como passear lado a lado, furtar rapidamente um beijinho, ficar por instantes de mãos dadas e pouco mais, pois, como acontecia quase sempre, havia por perto uma pessoa adulta encarregada de vigiar essa convivência, de modo a não passar dos limites de pudor permitidos.

- Ntoni, tra mon di Lurdes! - ordenava Nha Txika, com autoridade!

É claro que se verificavam desvios à norma, desde namoros ostensivos, com beijos e  carícias em público, a propalados ou especulados casos de ato sexual, sem falar de um ou outro episódio de alegado rapto de miúdas.

- Fladu ma Djoka dja tra Joana di kaza!  - informa-me o Zeka.

Mas conseguir o amor das miúdas nem sempre era fácil, pois elas receavam apanhar umas  bofetadas ou chicotadas dos pais, caso anuíssem à conquista. Outrossim, os pretendentes tinham de ser bons "partidos": não bastava serem bonitos e vestirem-se bem, mas deviam ter "condições" para assumir responsabilidades futuras: terem escola, serem sérios, trabalhadores e ou filhos de boa família.

- Kuze ki bu odja na kel pe rapadu la ki ka ten undi kai mortu? - interrogava Nho Juka à sua filha Nhota.

Além disso, a arte da conquista tinha de ser bem aprendida pelos pretendentes, a fim de lograrem o "sim certo" da pretendida. Senão era um desastre, um "não claro", como aconteceu com o Kaka di Beba.

- Oh, minina, ami n-krebu txeu sima porku na lama. Ranja ku mi!

- Nau! Bai t'imbora, mos! Já ki bo e porku bai djobi n-otu kau, pamodi mi  n-ka lama. 

Melhor sorte tinham os que levam para a conquista mui bem estudada lição, como o Romeu, emigrante em Holanda, de férias em Cabo Verde:

- Minina Julinha, dexa-m abri ku bo. Ora ki n-odjabu, mais linda ki prinseza di Holanda, nha  korason ta bati forti i nha alma ta xinti sima ki n-sta na Céu. Si bu ranja ku mi, n-ta faze-bu nha rainha.

- Djan krebu-bu sima Julieta kreba Romeu - responde-lhe Julinha, que tinha uma boa quarta classe e gostava de ler romances.

O repositório das formas de conquistar as miúdas da minha infância é vasto, desde o simples lançar de olhares à dedicação de poemas e canções, passando pela aprendizagem de inúmeras frases alegadamente infalíveis.

Mas para se chegar ao coração da pessoa amada nem sempre era preciso ou suficiente fazer uso desse ritual da conquista. 

Cada miúda reagia de modo diverso às conquistas dos pretendentes e, por vezes, de forma mais ou menos discreta, elas tomavam a iniciativa, através de bilhetinhos ou recados que enviam, por portador seguro, aos eleitos dos seus corações.

Mas o que era socialmente apoiado sem rebuço era o namoro sério, com pedido de casamento. Na minha infância, ainda persistia o ritual do pedido de casamento feito aos pais da miúda por pais ou representantes da família do moço. 

O tempo passa e, com ele, mudam as formas e os rituais de conquista, de compromisso e namoro. O tempo da minha infância difere do atual e não ouso dizer qual o melhor. Afinal, namorei outrora e namoro hoje. Mas, ainda assim, não seria mau trazer para o namoro dos tempos atuais o que o namoro da minha infância tinha de sobra: pudor, recato, respeito!

Praia, 4 de agosto de 2024

Bartolomeu Varela 

 


 






Chuva engraçada

Em Cabo Verde, a falta e a irregularidade das chuvas são abundantemente descritas em páginas da História do arquipélago, que igualmente dão ...